Rebatizados pela Inquisição

Rebatizados pela Inquisição

 

Artigo extraído da “Gazeta do Povo”

https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/rebatizados-pela-inquisicao-2qgjroq93lc5ohhidof7x5avi

 

Rebatizados pela Inquisição

 

Durante muitos anos se acreditou que quem tivesse o sobrenome oriundo de plantas, flores, frutos, fauna ou de um acidente geográfico seria certamente um judeu convertido em cristão ou um descendente dele. Não há, porém, comprovação científica para tal hipótese. “Pesquisei o assunto durante 40 anos. Cheguei à conclusão de que os cristãos-velhos também usavam sobrenomes como Costa, Carvalho e Pinheiro”, afirma a historiadora Anita Novinsky, da Universidade de São Paulo (USP).

O problema é que não há registro escrito sobre como esses sobrenomes foram adotados antes dos marranos (como eram pejorativamente chamados os cristãos-novos). O que se sabe é que os judeus transformados forçosamente em cristãos receberam o sobrenome de padrinhos, da cidade onde moravam, da aldeia. “Por isso a associação desses sobrenomes aos cristãos-novos. Quando se faz pesquisa na área, percebe-se que há uma repetição grande de certos nomes de flores e frutos entre eles. A questão é que já existiam cristãos-velhos que também tinham o mesmo sobrenome e os novos copiaram”, diz. Eles imitaram o sobrenome dos antigos para evitar castigos e opressões, pois os marranos foram perseguidos por 285 anos pela Inquisição.

A confusão começa quando os reis católicos da Espanha (Fernando e Isabela) expulsaram os judeus do país e essa população migrou para Portugal. Em 1497, por decreto de Dom Manuel, eles foram forçosamente convertidos em cristãos. “Foram agarrados pelos cabelos e pela barba e levados à pia batismal”, afirma Anita. Os judeus também tiveram de escolher um novo nome. Costumavam usar José ou Maria e a denominação do lugar onde viviam como sobrenome: se moravam em Guimarães, por exemplo, usavam o termo para identificá-los como família. Adotar essa nova identidade foi também obrigatoriamente começar uma outra vida, conforme explica Anita em entrevista à Gazeta do Povo.

 

O que significou para eles mudar obrigatoriamente de sobrenome?

Quando se tirou o nome, não se tirou só isso. Retirou-se a identidade, quem eles eram. Ficaram sem a cultura, a comida, a escola, a sinagoga. Não eram mais filhos de fulano, eram nada, foi isso o que aconteceu com os judeus de Portugal. Não podemos esquecer que somos de onde viemos, somos o que os pais, os avós, os antepassados foram. Não se pode falar uma coisa sem entender o conceito dela. É preciso entender o sentido profundo dos nomes.

 

Os judeus de Portugal representavam que porcentagem da população naquela época?

As estatísticas não são muito confiáveis nesse período, mas eram 20%, 30% da população. Eram pessoas que estavam há 15 séculos na Espanha (e também ou depois em Portugal) e que foram convertidas em cristãs à força. Eles não queriam deixar de ser judeus, estavam muito apegados à religião judaica.

 

Quais foram as consequên­cias dessa postura?

Eles foram duramente perseguidos na Inquisição, porque ter esses sobrenomes significava um grande potencial de ser ou ter sido judeu. Essa era a crença. A verdade é que há a possibilidade de haver uma maior concentração de nome de plantas, da fauna e de acidentes geográficos entre cristãos-novos. E isso foi usado contra eles.

 

Como?

Observe: Hitler investigou a origem judaica até a quarta geração dos alemães. A Inquisição investigou até a nona. O sobrenome era o primeiro indício, mas, às vezes, se não houvesse provas, bastavam rumores. Um “disse que me disse”, um fuxico já bastava para prender os cristãos-novos. A Inquisição tinha interesse em confiscar os bens deles e, para fazer isso, tinha de conseguir provas de que eles eram eles.

 

O que confiscavam?

Tudo. Os cristãos-novos foram perseguidos por 285 anos, inclusive no Brasil. São quase trezentos anos, entre os séculos 16 e 18. Aqui eles tinham muitos imóveis, eram grandes proprietários de engenho, de terras e de casas. Tinham joias, diamantes, vacas, cavalos. Uma colcha de cama naquela época valia muito dinheiro. Em meu livro Inquisição: bens confiscados a cristãos-novos no Brasil, século XVIII é possível se ter uma ideia de tudo o que pegaram deles.

 

Esses confiscos sustentavam a Inquisição?

A inquisição era um tribunal corrupto que procurava provas judaicas dos portugueses para poder prendê-los. Prendia e confiscava os bens. Metade do que se confiscava ia para a Igreja e, a outra metade, para o rei de Portugal. Os judeus sustentaram Portugal com dinheiro do confisco. Sempre digo que a Inquisição estava interessada não na religião, mas no confisco.

 

Por quê?

É que ela não tinha outra fonte de entrada. Era a maior burocracia do país e precisava pagar todos os funcionários. Pagava com dinheiro do confisco porque não tinha outra fonte de renda, só dinheiro dos réus. Por isso estava interessada em prender e não em matar.

 

Quais os sobrenomes mais citados entre os que foram presos pela Inquisição?

No meu artigo The myth of the marrano names [sem tradução para o português], fiz uma lista dos sobrenomes que mais aparecem entre os detidos pela Inquisição [principalmente de marranos]. Nunes aparece 120 vezes; Rodrigues, 137 vezes; Henriques, 68; Mendes, 66; e outros, como Correa e Lopes, aparecem 51 vezes. Há vários outros.

 

Quem são hoje os cristãos-novos?

Depois de 40 anos de pesquisa em arquivos portugueses e europeus, de um modo geral digo que grande parte da classe branca e média brasileira é de origem judaica. Veja, os cronistas e viajantes do Brasil colônia narram um país formado por ¾ de uma população de origem judaica. É quase tudo.

 

A senhora pesquisa também a relação do jesuíta padre Vieira com os judeus. O que descobriu?

Estou terminando um livro sobre o assunto que vai mostrar uma outra leitura do padre Antonio Vieira. É completamente diferente de tudo o que se escreveu sobre ele até agora. Vieira foi um homem dissimulador, não falava o que pensava. Ele não podia falar o que pensava, porque naquele tempo Portugal vivia um conceito introduzido que ficou conhecido como “a cultura do segredo”. Ninguém podia falar ou escrever o que pensava. Era gesto suspeito. Um escritor português disse uma frase muito boa: “A Inquisição transformou a hipocrisia num vício nacional”. Porque todo mundo tinha de ser hipócrita, ninguém podia falar o que pensava. A verdade é que padre Vieira era imbuí­do de judaísmo. E isso aparece na própria obra dele. Na simbologia, nas entrelinhas, na expressão do pensamento. E a própria Inquisição que o prendeu dizia que toda a obra dele tinha odor de judaísmo. Era mesmo. Os sonhos dele, tudo era baseado no Velho Testamento.

 

Sua pesquisa vai mais além e chega também ao campo da literatura. O que Machado de Assis tem a ver com o judaísmo?

Machado se interessou muito pela questão judaica e na obra dele você encontra personagens judeus muito fortes. O poema A cristã-nova é um exemplo. Ele tinha grande admiração pelos judeus. Escrevi um livro que retrata em detalhes isso e se chama Machado de Assis, os judeus e a redenção do mundo.

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